O ostracismo da sexualidade binária

Você teria que viver há quase 100 anos atrás para compreender a efervescência cultural e comportamental presente nos ares dourados dos anos 20.

Em meio a surrealistas, dadaístas, vanguardistas de todos os ramos, é irreal não se lembrar de Coco Chanel usando peças "boyfriend" antes mesmo de elas terem esse nome. Entre pérolas verdadeiras e fakes, a órfã de mãe, criada por freiras, queria tanto dar praticidade e conforto as mulheres de seu tempo – em contramão ao estilo rebuscadíssimo de Paul Poiret – que, quando o conceito máximo de luxo não passava por sua cabeça, ela criou o pretinho básico, divulgou o tailleur de jérsei, introduziu o blazer, popularizou o cardigã através de paletós masculinos sem gola e vestiu mulheres de calça.

Antes de mademoiselle, outros podem ter utilizado o mix entre o feminino e o masculino, mas não como Chanel o fez.

A ideia não colou. Misturar gêneros nunca foi de bom tom. Me vem a cabeça a magnificente maximalista Iris Apfel em seu filme documentário dizendo como comprou sua primeira calça jeans nos anos 40. O vendedor se recusava a vender pois achava inapropriado uma mulher usar calças. Anyway, a partir de um suéter emprestado de seu namorado, Chanel adaptou todas as boas peças do guarda-roupa masculino e foi pioneira na imagem andrógina que hoje soa meio -lamento a hipérbole- ancestral.

Quem vem acompanhando o cenário de moda e comportamento mundial percebeu que o termo da vez é o "gender-neutral". Levantar a bandeira da ausência de gênero é recorrente em diversos desfiles, campanhas e virou imagem definida de Alessandro Michele, sucessor de Friga Gianini no cargo de diretor criativo da Gucci.

Avesso a estereótipos, Alessandro cria um conceito único, em que roupas geek se insinuam neutras na questão de gênero. São veladamente concepções "femininas" e "masculinas" que se misturam e se intercalam. Após uma dose de Alessandro Michele você se pega ilimitado quanto às definições de homem e mulher. Você não consegue (e nem quer) estabelecer leis para o que é dele e o que é dela. Alessandro convence não porque coloca vestido em homem ou porque tira a feminilidade da mulher (o que seria tudo bem, também) mas pela maldade do ar. O ar não é inocente e a mensagem de Alessandro para a discussão de uma sexualidade em mutação está no ar. No ar escancarado e hermético. Parece contraditório, mas só porque, às vezes, é difícil explicar aquilo que se sente com os olhos.

Giorgio Armani, célebre por uma moda tradicional com foco no cliente e não na imprensa, se reinventou ao lado de Miuccia Prada e Ricardo Tisci, alinhando em seus desfiles homens e mulheres com peças exatas. Um símbolo ostensivo do processo de democracia em voga no mundo dos dias correntes.

Para o verão de 2016 da Martin Margiela, John Galliano (is back for good)  selecionou alguns modelos homens para atravessar a passarela com "roupas de mulher". Mesmo com esforço, em alguns momentos não se chegava a uma conclusão se era homem ou mulher quem estava desfilando. Andrej Pejic às vezes é mulher, às vezes é homem, às vezes confunde. Os modelos de Galliano são além. Não se põem a disposição de interpretações. É tão gender-neutral que vencem pela aceitação daquilo que se mostram: "indefinidos."

Em absoluta harmonia com esse movimento, a multimarcas inglesa Selfridges executou o projeto "Agender" em março e abril de 2015, que consistia em erradicar os departamentos para homem e para mulher, transformando a loja em um espaço unissex. Também em março passado, o Facebook deixou de apresentar apenas "masculino" e "feminino" para os usuários da rede no Brasil, expandindo sua visão para várias outras definições, entre elas andrógino, travesti e assexuado.

Não vale a pena estabelecer regras. Essa é a regra. É natural ver Jared Leto vestindo animal print e Chanel boots "feminina" da coleção Dallas, ou Kanye West com top Céline desfilado por uma mulher. Quem não se lembra dos twins Anna Wintour e Marc Jacobs in Prada coats? Aliás, o estilista é expert no assunto. Posou para Industry as a woman, exibe constantemente sua versatilidade no Met Ball, contratou o modelo andrógino Andrej Pejic, que ganhou passarelas de John Galliano, Paul Smith e Raf Simons – e um papel em “A pequena sereia” de Sofia Coppola – para uma campanha da Marc by Marc Jacobs. Escolheu Miley Cyrus como garota propaganda de sua grife, em que ela aparece como um garoto. Ou garota.

O mundo now está bem unissex. Isso é algo que se leva a pensar em quando, no final dos anos 1960, Yves Saint Laurent apresentou seu famoso "Le Smoking": um smoking feminino. Apesar de aclamado pela Vogue francesa com fotos de Helmut Newton e em plena revolução cultural, a imagem de uma mulher vestindo roupas masculinas foi interpretado como provocação sexual, rebeldia arbitrária e era associado a uma mulher que desejava um papel social que não cabia a ela. Subestimar mulheres da terra de Joana d'Arc é, no mínimo, incoerente. Não dá pra imaginar nos dias correntes uma mulher ser impedida de entrar em restaurantes ou ser expulsa de hotéis por estar usando o tal smoking, mas isso realmente aconteceu.

A imagem alucinógena do final dos 60's e começo dos 70's que temos em mente aconteceu inflamadamente no underground. O mainstream tradicionalíssimo não compreendia a dissidência dos louquinhos no Woodstock ou a androginia de Ziggy Stardust.

Nessa modernidade líquida, quando Nicolas Ghesquière escala Jaden Smith na campanha feminina da Louis Vuitton desafiando o gênero binário, isso se torna atitude plausível e acarreta discussões mundo afora sobre as caixas de expectativa em que os seres humanos são colocados quando nascem.

En fin, entrando em uma heavy trip, ninguém jamais elevou o conceito de gênero neutro ao máximo sucesso como faz Rei Kawakubo. A atipicidade da minha coup de coeur arrebata pelo bizarro. As coleções da japonesa nos levam para outro mundo. Não há na Terra alguém capaz de exercer cidadania usando as criações da estilista. Modificam a forma humana. Transformam a forma de pensar. Joga longe o conforto e nos faz enxergar como a estranheza e o fora do comum podem ser tão lindos e sedutores quanto o padrão de beleza universal. Não sei se dá pra explicar a genialidade de Kawakubo. Mas, tudo o que precisa ser explicado não vale a pena. E não sou eu quem está dizendo, é Voltaire.

O estereótipo engessa, estigmatiza. Se acostumar com o comum é se tornar vulnerável, presa fácil. O gênero neutro é um exercício de democracia, ser contra arquétipos, ser contra aquilo que é fossilizado. Em contradição ao conceito neutralizado, o ponto de vista gender neutral não é nada imparcial: abaixa rótulos, prende a atenção, provoca debate. O ponto de vista é duro, e é pior para aqueles que são pegos de surpresa. Também é pior para quem tem dificuldade de se adaptar. "O homem absurdo é aquele que nunca muda." Não são todos que entendem isso em vida, mas a mudança é natural e indispensável para o mundo e para os que vivem nele.

Gucci por Alessandro Michele:





Giorgio Armani:


Prada:




Givenchy :





Maison Margiela:



Jared Leto:


Kanye West:



Marc Jacobs e Anna Wintour:



Le Smoking de Yves Saint Laurent por Helmut Newton para Vogue França:




Jaden Smith para Louis Vuitton:


Rei Kawakubo:





Por Matheus Bragansa

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